O delegado João Quirino Florio, da Polícia Federal, solicitou. A
procuradora da República Sara Moreira de Souza Leite endossou o pedido. E
a juíza Pollyanna Kelly Alves, da 12ª Vara Federal do Distrito Federal,
determinoua quebra do sigilo telefônico do repórter Murilo de Queiroz
Ramos, da revista Época. Por quê? Deseja-se identificar a fonte que
repassou sigilosamente um relatório do Coaf, o Conselho de Controle das
Atividades Financeiras. O documentolistava os brasileiros suspeitos de
esconder dinheiro em contas secretas na filial suíça do Banco HSBC.
Tratado
como criminoso, o repórter não fez senão cumprir o seu papel. Divulgou
informações com alto grau de interesse público. O direito de resguardar o
sigilo de fontes jornalísticas é previsto na Constituição. Esse direito
é reconhecido por decisões que já consolidaram uma jurisprudência no
Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, o delegado pediu, a procuradora
endossou e a juíza quebrou o sigilo, para buscar nas contas telefônicas
do repórter pistas que levem à sua fonte. Inaceitável!
A
Associação Nacional dos Editores de Revistas entrou com um pedido de
habeas corpus para suspender, por absurda, a medida judicial. O mais
grave é que, a essa altura, o delegado federal talvez já tenha apalpado
as contas telefônicas do repórter. A ordem da magistrada de Brasília foi
expedida na surdina em 17 de agosto. E só na última sexta-feira, 7 de
outubro, a associação de revistas ficou sabendo. Recorreu ao Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, sediado em Brasília. O habeas corpus foi à
mesa do desembargador Ney Bello, que ainda não se pronunciou.
Na
petição, a associação pede à Justiça uma liminar que determine: 1) a
suspensão dos efeitos da decisão judicial que determinou a quebra do
sigilo telefônico do reporter; 2) o sobrestamento do inquérito; 3) a
suspensão da quebra do sigilo telefônico; e 4) a destruição dos extratos
telefônicos caso a operadora já tenha fornecido as informações do
sigilo telefônico ao delegado.
A REVISTA PROTESTA:
Ameaça à imprensa: Juíza quebra sigilo telefônico de jornalista de ÉPOCA
A
medida, tomada para tentar descobrir quem vazou no governo o relatório
do Coaf à revista, viola o direito constitucional do sigilo à fonte;
Aner impetra Habeas Corpus em favor do jornalistaO delegado João
Quirino. Ele foi encarregado de investigar o vazamento de um relatório
do Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf (Foto:
Reprodução)
A juíza Pollyanna Kelly Alves, da 12ª Vara
Federal de Brasília, determinou a quebra do sigilo telefônico do
colunista Murilo Ramos, da revista ÉPOCA. A medida foi tomada
secretamente em 17 de agosto. O jornalista não é suspeito de nenhum
crime. O objetivo da grave suspensão do direito constitucional do
colunista é um só: tentar descobrir a identidade de uma das fontes do
jornalista. Na sexta-feira, dia 7 de outubro, após tomar conhecimento do
fato, a Associação Nacional de Editores de Revista, a Aner, impetrou
Habeas Corpus, com pedido de liminar, em favor do jornalista. A defesa
pede a suspensão imediata da decisão da juíza. O HC foi distribuído ao
desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
A
decisão da juíza foi provocada por representação do delegado da Polícia
Federal João Quirino Florio. Ele contou com a anuência da procuradora
da República no Distrito Federal Sara Moreira de Souza Leite. Em abril
do ano passado, o delegado Quirino foi encarregado de investigar o
vazamento à ÉPOCA de um relatório do Conselho de Controle das Atividades
Financeiras, o Coaf. Nele, os investigadores do Coaf listavam os
brasileiros suspeitos de manter contas secretas na filial suíça do HSBC,
no escândalo conhecido como Swissleaks. A investigação do Coaf e o teor
do relatório foram revelados por ÉPOCA em fevereiro de 2015, em
reportagem que contou com a apuração de Murilo Ramos.
Em
20 de abril deste ano, após afirmar que Receita, Coaf e Banco Central
não haviam conseguido descobrir a origem do vazamento, o delegado João
Quirino pediu à juíza que quebrasse o sigilo do colunista Murilo Ramos.
Fez esse pedido antes mesmo de tomar formalmente o depoimento do
colunista, segundo despacho obtido por ÉPOCA. “A única maneira de chegar
ao autor do crime, que é grave, pois poderia comprometer todo um
sistema de segurança de informações vitais para o funcionamento de toda
uma economia, seria o cruzamento de chamadas de Murilo nos dias que
antecederam a entrevista que (sic) cruzá-lo com os telefones das pessoas
que poderiam ter acesso aos dados”, escreveu o delegado à juíza
Pollyanna Kelly.
Meses depois, em julho, o colunista de
ÉPOCA foi ouvido pela PF. Não sabia que o delegado já pedira a quebra de
sigilo telefônico. Recusou-se a revelar a identidade de fontes
envolvidas na produção das reportagem. Para isso, invocou, como sempre
fazem jornalistas em casos semelhantes, o direito constitucional ao
sigilo da fonte. Esse direito é previsto na Constituição brasileira e
consagrado no ordenamento jurídico da maioria das democracias
ocidentais. Tal proteção ao trabalho do jornalista está consolidada em
leis e nas doutrinas legais pela simples razão de que, sem ela, a
sociedade teria muito mais dificuldade para ter acesso a informações de
interesse público. Entende-se, inclusive nos principais tratados
assinados pelo Brasil, como o Pacto de San José da Costa Rica, que
qualquer obstáculo à liberdade de imprensa configura-se um obstáculo ao
próprio exercício da democracia.
Não se trata de um
direito controverso. O Supremo Tribunal Federal brasileiro tem posição
pacificada sobre o assunto: não se pode violar o direito do jornalista
de manter fontes em segredo. Escrevia, há vinte anos, o decano do
Supremo, ministro Celso de Mello: “A proteção constitucional que confere
ao jornalista o direito de não proceder à disclosure da fonte de
informação ou de não revelar a pessoa de seu informante desautoriza
qualquer medida tendente a pressionar ou a constranger o profissional da
Imprensa a indicar a origem das informações a que teve acesso, eis que –
não custa insistir os jornalistas, em tema de sigilo de fonte, não se
expõem ao poder de indagação do Estado ou de seus agentes e não podem
sofrer, por isso mesmo, em função do exercício dessa legítima
prerrogativa constitucional, a imposição de qualquer sanção penal, civil
ou administrativa”.
Tais princípios internacionais,
consolidados no Direito brasileiro há décadas, foram ignorados pelo
delegado João Quirino e, também, pela procuradora Sara Leite. Num
despacho de três páginas, assinado no dia 3 de agosto, ela concorda com o
delegado da PF. Assim como João Quirino, não argumenta por que o
direito constitucional ao sigilo da fonte merece ser anulado, nesse
caso, em prol da possível descoberta do autor do vazamento do relatório.
“Verifica-se a razoabilidade e a necessidade da medida investigativa
proposta, especialmente porque o jornalista, que poderia identificar a
pessoa que lhe forneceu as informações sigilosas, recusou-se a fazê-lo,
alegando o direito de preservar o sigilo da fonte”, escreveu a
procuradora Sara Leite. Ela chega a argumentar que a entrega dos
extratos telefônicos não configurariam quebra de sigilo telefônico, dado
que não há interceptação do conteúdo das conversas em tempo real.
Diante
do pedido do delegado e da concordância da procuradora, a juíza
Pollyanna Kelly precisou de somente três páginas para decretar a quebra,
semanas depois. “A medida pleiteada (a quebra do sigilo) mostra-se
imprescindível para apurar os fatos noticiados”, disse a juíza.
“Registro que a proteção constitucional ao resguardo das comunicações
não se mostra absoluta diante do interesse público em esclarecer o
suposto delito.” Ela determinou às operadoras que enviassem os extratos
do colunista diretamente ao delegado.
No Habeas Corpus
impetrado nesta sexta no Tribunal Regional Federal da 1ª região, a Aner
pede a suspensão dos efeitos da decisão judicial que determinou a quebra
do sigilo telefônico, o sobrestamento da tramitação do inquérito em
curso perante a 12ª vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal
e a suspensão da quebra do sigilo telefônico. No caso de a operadora
telefônica já ter fornecido as informações do sigilo telefônico à
autoridade policial, a defesa solicita que elas venham a ser
“absolutamente destruídas” até o julgamento final do HC.
Os
advogados sustentam que a quebra do sigilo telefônico, que é uma medida
cautelar extrema, traz para o jornalista “uma condição inequívoca de
investigado, fato que traduz uma absoluta falta de justa causa, pois
fere o sagrado direito constitucional inerente ao jornalista, que é a
liberdade de expressão e o direito de informar”. Os advogados lembram,
ainda, que o sigilo de fonte está assegurado pela Constituição Federal
em seu artigo quinto.
Em nota conjunta divulgada neste
sábado, dia 8 de outubro, a Aner, a Associação Nacional de Jornais (ANJ)
e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert)
criticaram a decisão da juíza. “A quebra do sigilo telefônico de um
jornalista implica em gravíssima violação ao direito constitucional do
sigilo da fonte e ao livre exercício da profissão de jornalista”, dizem
as entidades no documento . “A ABERT, a ANER e a ANJ repudiam a decisão
da juíza e reforçam que não há jornalismo e nem liberdade de imprensa
sem sigilo da fonte, pressuposto para o pleno exercício do direito à
informação.”
Tendência preocupante
O caso do
colunista de ÉPOCA, infelizmente, não é inédito. Há dois precedentes
recentes – e igualmente inconstitucionais. No mais grave deles, a PF
indiciou um jornalista do Diário da Região, em São José do Rio Preto,
interior de São Paulo. Também com apoio do Ministério Público, a polícia
queria descobrir a identidade das fontes do repórter, que revelara o
teor de uma investigação sigilosa sobre corrupção no município. A
Justiça aceitou quebrar o sigilo telefônico do jornalista. Foi preciso
que o jornal recorresse ao Supremo para anular a decisão.
Caso
semelhante transcorreu ano passado no Superior Tribunal de Justiça. O
governador Fernando Pimentel (PT) pediu a quebra de sigilo telefônico de
um jornalista – e voltou atrás. Seus advogados, Antônio Carlos de
Almeida Castro, o Kakay, e Pierpaolo Bottini, solicitaram ao STJ a
quebra de sigilo e o interrogatório de um repórter do jornal O Globo.
Pimentel queria descobrir as fontes que vazaram ao veículo informações
da investigação que corre contra ele na corte. O ministro Herman
Benjamin, relator do caso no STJ, determinou que a PF investigasse, por
igual razão, repórteres de ÉPOCA. Diante da repercussão negativa, os
advogados do governador desistiram da ação.
Em países
como Estados Unidos, o sigilo constitucional ao sigilo da fonte é
questionado, e ainda assim sob intensas críticas, somente quando a
Segurança Nacional entra em jogo. Em 2015 por exemplo, a Suprema Corte
dos Estados Unidos rejeitou apelo do repórter James Risen, do New York
Times, duas vezes vencedor do prêmio Pulitzer, para não ter de depor e
revelar a identidade de uma fonte. Durante sete anos, Risen lutou para
não ter de testemunhar no julgamento de Jeffrey Sterling, ex-agente da
CIA, acusado pelo Departamento de Estado de passar a Rise informações
sobre uma operação secreta do governo americano para sabotar o programa
nuclear do Irã, exposta em um dos capítulos do livro, “State of war”.
Quando perdeu Risen ficou sujeito à prisão, caso não colaborasse. Na
investigação, o Departamento de Justiça obteve secretamente emails e
registros telefônicos de contatos entre Sterling e Risen. Desde então,
Risen afirma que, apesar da desistência, ao ir tão longe, o governo
Obama arranhou a Primeira Emenda da Constituição americana.
Nos
anos pós Wikileaks e Edward Snowden, as autoridades estatais no mundo
todo, mesmo em países de longa tradição democrática, parecem empenhadas
em enfraquecer o já estabelecido, e mais que necessário, princípio do
direito ao sigilo da fonte de jornalistas. Um estudo da Unesco de 2015
mostra que entre 2007 e 2014, nos mais de 100 países pesquisados, o
direito a sigilo da fonte tinha sido sistematicamente atacado, seja por
legislações referentes a segurança nacional e antiterrorismo ou
submetido a vigilância individual ou em massa e ainda colocada em risco
pela retenção de dados obrigatória. “O marco legal que protege as fontes
confidenciais de jornalistas internacionalmente são essenciais para a
publicação de informações de interesse público – informação que de outra
maneira poderia nunca ser descoberta”, diz o documento.
Fonte: ÉPOCA
Créditos: Josias de Souza
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